terça-feira, 20 de outubro de 2009

Novembro um mes especial

Dia dos Mortos

Karla Hansen

"A morte não nos assusta, porque a vida já nos curou dos medos"
Octávio Paz

Para nós, brasileiros, diferentemente do que diz o escritor mexicano, Octávio Paz, prêmio Nobel de Literatura, a morte é a maior das assombrações. Aprendemos a temê-la desde a infância e rejeitamos o tema a tal ponto que se considera de mau gosto falar no assunto. Mas se, por descuido, a palavra nos escapa, corremos a bater três vezes na madeira. A exceção a essa regra é o dia de Finados, celebrado no dia 2 de novembro, criado para lembrar nossos mortos, rezar ou chorar por eles, visitar os cemitérios e colocar flores nos túmulos.

A tradição de venerar a memória dos entes queridos falecidos num dia especial nasceu de um culto católico que remonta ao ano 998, quando, na França, o abade de Cluny, Santo Odilon, decretou que em todos os mosteiros da Ordem de São Bento fosse celebrado, depois das vésperas de 1º de novembro - dia de Todos os Santos - o ofício dos mortos. Desde então, o 2 de novembro se tornou uma data importante do calendário católico e se espalhou por todo o mundo cristão.

Na maioria das cidades brasileiras, a celebração do dia de Finados se resume quase que exclusivamente a missas e a visitas, em massa, aos cemitérios. Mas, quanto mais longe das áreas urbanas, no interior ou no litoral, mais se pode encontrar superstições e rituais, a maior parte de origem portuguesa, relativas ao culto do dia dos mortos. Entre elas, a proibição de caçar e pescar nesse dia, a crença em que as almas visitam os lugares onde viveram ou nos quais seus corpos foram assassinados ou, quando afogados, suas almas passeiam sobre as águas do mar e de açudes espalhando pavor. Deve-se, ainda, de acordo com essas crenças, evitar encruzilhadas e locais escuros no dia dos Mortos.

Acredita-se que por essas e outras a morte tenha se enraizado na cultura brasileira com esse aspecto pavoroso e sombrio, por evocar nossos terrores mais atávicos, além dos sentimentos de saudade e de tristeza, pela perda de pessoas queridas, daí querermos manter a maior distância possível dessa "senhora" implacável.

No entanto, esse não é o caso dos nossos "hermanos" do México, que mesmo tendo sido colonizados por espanhóis, povo extremamente católico, lidam com a morte de forma mais cotidiana, mais íntima, como "coisa da vida" mesmo, estabelecendo com ela uma relação bem humorada e até alegre. No México, a Festa dos Mortos, que acontece entre os meses de outubro e novembro, celebra, sobretudo, a vida! E por ser vibrante e culturalmente rica, a festa foi incluída como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Unesco.

A tradição mexicana vem dos povos pré-colombianos, como os astecas, que estavam no poder quando da chegada dos espanhóis, além dos toltecas, maias, olmecas, purépechas, tarahumaras e tojolabales. Tais culturas adaptaram ao cristianismo espanhol seus ritos e sua maneira de se relacionar com os mortos e com a morte (vista como origem e destino, lugar de descanso e de reencontros).

Essa relação tão familiar dos mexicanos com a morte não significa, no entanto, que eles não tenham medo, mas ajuda as pessoas a conviver e a sobreviver ao medo de morrer ou de perder entes queridos. Afinal, morrer é um fato absolutamente natural na vida de qualquer um. Como dizia meu pai, "para morrer, basta estar vivo".

Para nós pode parecer estranhamente mórbido, mas é comum que as crianças devorem caveirinhas de açúcar, bala de goma, chocolate ou amaranto, pães dos mortos e todo tipo de guloseimas que brincam com a figura da morte. Assim, acostumam-se ao contato com uma morte alegre e companheira, personificada em bonecos-caveiras de papel machê. Também há o costume de noivos, depois do casamento, visitarem a tumba de seus pais e parentes para tirar fotografias. Desse modo, não só apresentam o companheiro ou companheira a seus mortos, mas também compartilham com eles o momento de felicidade do casal.

Durante os meses de outubro e novembro são apresentadas, em várias partes do México, peças e canções populares com temas relacionados à morte; montam-se altares públicos em museus e instituições públicas; são inauguradas mostras de cinema e bailes; ministradas conferências sobre os distintos aspectos da morte (médico, antropológico, teológico, histórico etc.); e se publicam as calaveras políticas, tradição que consiste em escrever epitáfios humorísticos de políticos e pessoas públicas.

As festividades que envolvem o Dia dos Mortos, variando de região para região, começam no final de outubro e seguem até a primeira semana de novembro. Os dias são pautados em função do regresso do mortos, de acordo com a forma de suas mortes: no dia 30/10, regressam os suicidas; em 31/10 voltam as almas dos mortos em acidentes; no dia 1º de novembro regressam as crianças; e, no dia 2, as almas dos adultos.

Para quem quiser saber mais sobre o espírito irreverente dos mexicanos diante da morte e compartilhar esse conhecimento com as crianças, vale a pena ler "Só um minutinho: conto de esperteza num livro de...", da escritora e ilustradora mexicana Yuyi Morales, lançado no Brasil este ano pela Editora FTD, com tradução de Ana Maria Machado.

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Um paralelo curioso: Debussy e Luiz

Um paralelo curioso: Debussy e Luiz Gonzaga

Ricardo Moreno

Professor de Música da rede municipal (Rio de Janeiro e Duque de Caxias);
mestre em Etnomusicololgia pela UniRio

Na história da música, tanto popular quanto erudita – e até mesmo, no sentido mais geral, na história das artes e das ciências –, encontramos sempre o que podemos chamar de pontos de inflexão. São momentos em que ocorrem guinadas, mudanças de curso, enfim, mudanças. Dessa forma, alguns autores constituem-se como liminares; servem como pontos de passagem para a construção de um novo momento naquela atividade. Em certo sentido, foi isso o que aconteceu com Debussy e Gonzaga.

Quando da crise no sistema tonal (simplificando ao máximo, podemos dizer que esse sistema é o que usa aquela escala que aprendemos quando crianças na escola: dó, ré, mi... si, dó) na chamada música de concerto, crise ocorrida no século XIX, os compositores estavam à procura de estabelecer novos caminhos para a produção musical. A produção da chamada Escola de Viena, com Schoenberg, Alban Berg e Webern, foi, de certa forma, uma modo de responder a essa crise. Como afirmava Schoenberg, o trabalho de Wagner já tinha anunciado a crise do sistema tonal, e depois dele não era possível nenhum retorno. Foi desse entendimento que surgiu a necessidade de construir um novo código, que fosse mais longe do que Wagner já tinha ido. Esse código seria o dodecafonismo; depois, o serialismo integral.

Outra solução vinha da França: Claude Debussy. Além da questão timbrística que preocupava esse compositor (novos sons resultantes de novas combinações de instrumentos), havia também a possibilidade de usos dos modos (sistema que organiza as notas da escala de forma diferente do sistema tonal) que ele descobriu, ou pelo menos teve um precioso insight, a partir da audição de músicas orientais na Feira Mundial de Paris, por ocasião das comemorações do centenário da Revolução Francesa (1889). Além dos modos, havia também a questão das polirritmias (sistema pelo qual várias “linhas” rítmicas são articuladas simultaneamente), que Debussy afirmou ser imensamente superior às formas rítmicas usadas na tradição da música ocidental.

Ora, a utilização de estruturas modais antigas e advindas de outras tradições não ocidentais acabou sendo uma forma de oxigenação para a música ocidental. Quer dizer, uma forma aparentemente superada de estruturar os sons retorna através de novos usos perfazendo um novo sistema, ou melhor, uma nova forma de usar o antigo sistema. Outros compositores de música contemporânea também utilizam elementos modais em suas peças. Esse é o caso, segundo José Miguel Wisnik, de Steve Reich, que encontrou na música balinesa e na africana elementos modais e estruturais e os utilizou em seus próprios processos composicionais minimalistas.

O caso Luiz Gonzaga na música popular segue um esquema aproximado do de Debussy na música erudita. Quando Gonzaga surgiu no cenário musical brasileiro, na década de 1940, este era de natureza predominantemente tonal. E continuou sendo, mesmo depois que ele introduziu elementos modais no cancioneiro popular brasileiro.

É possível pensar que Luiz Gonzaga tenha feito essas introduções de modalismos sem refletir muito sobre isso, mas o mesmo não se pode dizer das gerações de compositores que surgiram nos anos 1960, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Edu Lobo, que se valeram desse conhecimento para produzir inflexões estéticas na música brasileira como forma mesmo de oxigenar e renovar os caminhos da MPB.

É sintomático que tenha sido do Nordeste brasileiro que tenha vindo esta solução, já que, como se sabe, é uma das regiões brasileiras mais atrasadas do ponto de vista econômico e com baixos níveis de escolarização. Talvez seja por isso mesmo que os artistas dessa região puderam ter contato com indivíduos que, por estarem afastados da tradição escolar, continuavam a produzir seus cantos e sua modas fora dos esquemas eleitos como canônicos pela tradição letrada. Talvez tenha sido dessa forma que um modo musical que possivelmente remonta à Antiguidade, o chamado mixolídio, permaneceu em uso nos aboios cantados pelos vaqueiros sertanejos.

Luiz Gonzaga ouvia esses aboios e, com essa estrutura, compôs: “eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião...”. Esse verso foi construído em cima da referida estrutura mixolídia.

O importante é que entendamos que o código musical, como qualquer outro código comunicativo, corre o risco de enfraquecimento quando começa a se tornar redundante. Nesse momento ele precisa do aporte de novas informações – e, de certa maneira, foi isso que aconteceu com o modalismo, tanto na música popular brasileira do século XX quanto na música de concerto europeia do século XIX. Outra lição que podemos tirar daí é que essa revigoração do código pode vir de conhecimentos aparentemente ultrapassados e antigos. É preciso estar atento às novidades do velho!

Publicado em 28 de abril de 200