quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Poesia e Prosa

Jogos de palavras

Alexandre Rodrigues Alves

- Vamos lá, agora é a vez do Rodrigo. As palavras sorteadas são...
- Pô, nas outras vezes, pra mim saíam sempre as piores, as mais complicadas de combinar, sei lá...
- A primeira é trânsito; a segunda palavra é...
- Isso vai ser fácil pra ele, o cara adora dirigir!
- Bebê!
- Bebê, criança, ou beber, verbo?
- Bebê, criança!
- Vai botar um menino na direção?
- Dois minutos para pensar, pesquisar, ler alguma coisa para se inspirar... ou pode ir para o quarto, para a cozinha...
- Posso ir para a garagem?
- Não! Não pode sair da casa!
Dois minutos e dez segundos depois, Rodrigo volta à sala, sério, compenetrado.
- Fui para o escritório e anotei algumas coisas. Posso usar o que anotei ou tenho que confiar somente na memória?
- Pode usar.
- Mas é tanta coisa assim?
- Não, é que talvez eu me perca na história que eu montei.
Rodrigo refestela-se na poltrona, o local do contador de história da vez. Ele começa.
- Rui e Magda saíram de casa esbaforidos. A mochila já estava pronta há dias. A bolsa dela rompera, a ginecologista já havia sido avisada e estava indo para o Hospital dos Italianos. A rua onde eles moravam estava em obras, muita poeira, lama, só passava um carro de cada vez. A mulher já estava com as contrações, de leve, mas que incomodavam e assustavam. Sábado à noite, dia de todos passearem, todos os morrinhas na rua, um trânsito caótico. Aí está a primeira palavra.
- Começou bem!
- Obrigado. No fim da rua, a sirene de uma ambulância aumentou a tensão no carro. Afinal, Rui não tinha essa prerrogativa para facilitar sua passagem pelos outros. E as dores da mulher aumentavam.
- Ele usou prerrogativa! Caramba!
- Posso continuar? O sinal estava amarelo, o carro da frente parou. Rui deu uma freada que Magda quase veio parar no banco da frente. Por segurança, ela estava no banco de trás do carro. Rui aproveitou a deixa para reclamar um bocado do idiota, do morrinha, do imbecil, do roda-presa, do comprador-de-carteira-no-teledetran do carro da frente. Dava pra ver que a pista de lá do canal, que ele ia pegar, estava completamente engarrafada. Só parou de falar quando percebeu que estava deixando a mulher mais nervosa ainda. Primeiro filho! A mulher tentou contemporizar e disse que estava aguentando bem, que dava pra ir com calma.
Rui olhou pra frente; o sinal dos pedestres começou a piscar a luz vermelha: já ia abrir para os carros. Nesse momento, um ônibus começa a fazer um retorno proibido, para passar para a pista de subida. "Não é possível", ele diz, "que um profissional, dirigindo esse monstrengo, apagado, indo para a garagem, venha fazer um retorno aqui! Ele vai ter que manobrar! E fechou a passagem para nós".
Rui está tão transtornado que não vê o sinal abrir. Quando ouve as buzinas e tenta arrancar com o carro, o motor apaga. Ele liga rápido, mas o vermelho já acendeu. O ônibus continua lá, no meio da rua, não passa nenhum carro, nem na pista de cá, para o Centro, nem na de lá, na subida. Ele procura, pelo retrovisor do ônibus, observar o rosto do motorista. Lá, uma mão para fora da janela segura um cigarro aceso. Tranquila...
"O salafrário faz uma lambança dessas com o trânsito" - olha a palavra aí de novo! - "e fica lá, na boa, esperando o quê? Que todos os carros desapareçam da frente dele?" A ambulância apita novamente, cada vez mais perto, dois ou três carros atrás. "O que é que ela quer? Que a gente faça uma transmutação e desapareça? Não dá!", continua a falar alto. O sinal abre e fecha, o ônibus paradão lá, a mão com o cigarro aceso para o lado de fora, tudo apagado dentro do ônibus.
Toca o celular. É a médica para saber deles, que ela já está no hospital, está tudo pronto esperando por Magda. A mulher é que fala com a doutora, aparenta tranquilidade. O trânsito do outro lado anda, o ônibus vai sair do lugar, vai liberar a rua... Passa tanto carro preso pelo ônibus que queria fazer o retorno que o sinal abre e fecha e não pára de passar uma montanha de carros na frente do Rui. Abre o sinal pra ele, que acelera rapidamente. E freia, porque outro ônibus se atravessa na frente dele, reclamando do ônibus que fez aquela manobra cretina e agora se vai, lá do outro lado do canal... O sinal fecha.
Rui desce do carro e vai até o motorista. Bate na porta de entrada. Está tudo parado do lado de cá do canal, tudo cheio de carros que ficaram retidos pelo primeiro ônibus. O motorista nem dá bola, faz sinal para ele voltar para o ponto de ônibus e esperar o próximo. Ele resolve ficar em pé na frente do ônibus, e o motorista olha para o lado, para o canal imundo. Xinga o canalha de todos os nomes, esquece da mulher, que, a essa altura - e conhecendo o gênio do marido -, já desceu do carro e foi pegar um táxi do outro lado do canal.
Rui não viu, esqueceu de tudo, das buzinas, da sirene... Pega uma pedra e joga no vidro do coletivo. Acerta a testa do motorista, que cai para o lado. Ele sai da frente, porque o ônibus começa a descer a rua e bate, devagarzinho, no poste de sinalização. Agora sim, a rua está fechada. De vez. Os passageiros gritam; um abre a porta, outro levanta o motorista, completamente ensanguentado, a blusa empapada de vermelho, o olho tampado pelo inchaço.
Um homem aperta o braço de Rui. "Não saia daqui! Vou levá-lo pra delegacia! Como é que você faz uma coisa dessas?" A sirene não era de ambulância, era de polícia. "Mas espera aí", gritou Rui. "Tenho que ir para o hospital, levar minha mulher pra parir e esse canalha fechou a passagem da rua. Vai perder quatro pontos na carteira!" Olhou para o carro vazio. "Cadê a Magda? Onde é que ela está?"
No desespero, conseguiu arrastar o guardinha até o carro, gritando pela mulher. Nada, nem a bolsa com as roupas... No banco do carona, a luz do celular piscava. Toca a indefectível "Marcha turca", de Mozart. Ele atende. "Tá, tá bom, já entendi, que bom. Obrigado. Mais tarde eu vou praí." Desligou. Virou-se para o guarda.
"Tudo bem, podemos ir aonde o senhor quiser. Era a médica. Ligou pra avisar. Correu tudo bem, minha mulher está descansando, com o Manuel nos braços. Vamos pra delegacia. Depois eu tenho que ir para o Hospital dos Italianos para ver o meu bebê."
Pronto, a segunda palavra está aí.

Pubicado em 12/5/2004

Prosa e poesia

Prosa e poesia

Um Mestre

Alcione Araújo

Com o seu próprio apagador - me intrigava a ideia doida de ter um apagador, e levá-lo a cada sala, junto a livros e listas de chamada - apagava a lousa em silêncio. Tirava de nossa vista os riscos, grifos, setas, datas, nomes, palavras, esboços dos caminhos para o mundo que o professor da aula anterior nos descortinara. Antes de qualquer coisa, fazia questão de ter o quadro imaculado, com um frescor inaugural. Ali, ele inscreverá as trilhas, as rotas, os atalhos e precipícios, que nos conduzirão ao mundo de sua devoção.

Professores são cicerones de jovens na primeira viagem. Éramos turistas afoitos, inocentes, dispersos, irreverentes e alegres. Cada qual a seu modo, eles nos pegavam pela mão e nos mostravam o mundo pelo qual se apaixonaram, e que gostariam que nos apaixonássemos.

O professor Luíz Gonzaga dava aulas de Português. E que aulas, meu Deus! Por favor, meu caro leitor ou leitora, não avalie, a competência e a paixão do professor, por este balbucio que ora lê. Para ele, a língua deveria ser simples sem ser superficial, prenhe de metáforas para dizer o indizível, na qual as palavras voassem como pássaros em bandos ordenados. Não se contentava em ensinar o português, ensinava a nos apaixonarmos pelo português.

Usava terno e gravata, sob o guarda-pó branco, óculos de tartaruga e o intrigante apagador. Limpo o quadro, virava-se para nós, e apertava as mãos sobre o peito. Olhava-nos com um sorriso suave. Silenciávamos, sem palavras nem carrancas, bastava aquele sorriso suave.

E era suavemente que dizia o poema, sem declamar, nem representar. Dizia-o para que as palavras, as metáforas, o ritmo, a harmonia, o significado chegassem a nós:

Este é tempo de partido
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

E só então, arrepiado de emoção, puxando-nos pelas mãos, mostrava a beleza de cada palavra, o ritmo interior do verso, a invenção, a metáfora, a significação, a revolta...E nós, menos que adolescentes, percorríamos os labirintos de Drummond e, dali, seguíamos viagem, sem escalas nem baldeações, para a gramática, a análise sintática, a racionalização que facilita a compreensão. Eis que, sem notar, estávamos a reler versos, a confirmar que quanto mais os compreendíamos mais nos emocionávamos. Que, enfim, a cultura educa a sensibilidade. O fim da aula sempre me apertava o coração.

A vida me concedeu verdadeiros mestres, privilégio que tenho sempre presente. Homens e mulheres generosos que não só me doaram o que sabiam, como me ensinaram a paixão pelo saber. Devo a esses mestres - dos quais, ingratamente, ignoro paradeiro e destino, exceto alguns, mais próximos e não menos lembrados - quase tudo do pouco que sei. Você, meu caro leitor ou leitora, também deve ter os seus mestres eternos. Pare e pense. Faça um esforço para se lembrar. Onde estarão eles agora? Estarão vivos ou mortos? Aposentados, descartados, abandonados? Ou estarão felizes como merecem?

Não me esqueço da imagem que o professor Luiz Gonzaga deixou entranhada na minha memória emotiva. Um dia, ele se atrasou. Fazíamos a bagunça peculiar à ausência de autoridade, quando ele surgiu lento na porta. Fez-se imediato silêncio, todos sentaram-se, olhos fixos na porta. Ninguém acreditava no que via. O professor estava de óculos escuros, um monte de gaze sob cada lente. Numa mão, o apagador. Na outra, a bengala branca.

Éramos trinta adolescentes e acabávamos de descobrir a precariedade da vida. As lágrimas me escorriam rosto abaixo. Eu não queria que aquela cambada as visse. Mas quando olhei em volta, todos estavam como eu. Apertavam os olhos para não chorar. Ou para não ver.

O professor Luiz Gonzaga avançou altivo, tateando com a bengala o caminho até à mesa e pendurou a bengala no encosto da cadeira. Sem apoio, foi à lousa, apagou-a até ficar vazia e imaculada. Virou-se para nós, cruzou os dedos, apertou as mãos sobre o peito, e disse: "Fiquei cego. Não vejo vocês. Apenas pressinto suas presenças. Que ironia, eu não poder mais ler! Agora, sei a escuridão que sentiu Homero". Não havendo escrita então, recitava os próprios versos de cor. Não viu nem cantou o mundo no qual viveu. Eu, a quem não foi dado o verso, posso dizer poemas alheios que decorei. Camões, que via o mundo com um olho só, seria melhor poeta se tivesse os dois? Borges compensou com a leitura a curta visão que acabou em cegueira. Podíamos falar de obras criadas na penumbra ou no escuro... E deu uma aula sobre literatura e cegueira para uma classe que chorava em silêncio.